O Pão Nosso, de Todos os Dias

O Pão Nosso, de Todos os Dias

Da história de como o pão nasceu, pouco ou nada se sabe. Associamo-lo ao aparecimento do trigo na Mesopotâmia e à emergência da agricultura, mas há evidências da sua produção numa comunidade de caçadores-recolectores há cerca de 14 000 anos atrás, na Jordânia. Independentemente do seu passado mais distante e da sua origem, hoje encontramo-lo em qualquer parte do mundo.

Ao longo dos tempos, evoluiu e cresceu ao nosso lado, ajustando-se a cada lugar, e foi ganhando espaço nas nossas vidas. E nas nossas almas. Para alguns, mais do que um bem essencial, tornou-se num alimento sagrado, com grande peso cultural e emocional. Hoje, o pão é quase como uma linguagem que todos falamos e é algo que nos une. Apresentado de diferentes formas e cores, com diferentes ingredientes e nomes – como focaccia, em Itália, naan, na Índia, bagel, nos Estados Unidos ou o nosso tradicional Pão Alentejano – não há como fugir e resistir a este que é um dos alimentos mais importantes da nossa história.

O pão também tem feito parte da história mais recente do restaurante da Herdade do Esporão. Há quem diga que é o melhor pão da região e a verdade é que o trabalho desenvolvido pelo chef Carlos Teixeira e pela sua equipa tem ganho destaque e conquistado interesse. Para os fãs e para os mais curiosos, é mais do que motivo suficiente para uma visita. Para o chef, é o seu maior orgulho. Desde pequeno que o seu gosto por comer criou em si uma curiosidade em relação à cozinha. Aos oito anos, Carlos começou a cozinhar em casa e, enquanto explorava ingredientes e receitas, desenhou o seu futuro. Escusado será dizer que, naturalmente, a vida o trouxe para o mundo da cozinha e fez de si um cozinheiro de mão cheia. O pão é actualmente a sua maior paixão – uma paixão que levou tempo a manifestar-se, mas que se tem revelado também um talento.

“Sempre adorei comer pão, mas nunca tive curiosidade em fazê-lo. Passei grande parte da minha vida satisfeito com o pão que comprava no supermercado. Só conhecia aquele e achava que era bom. Quando fui trabalhar para o The Clove Club, em Londres, experimentei o pão que eles faziam lá e percebi que estava a provar algo diferente, mas nem dei muito valor.”

Quando foi viver e trabalhar para o Alentejo, descobriu o pão. O verdadeiro pão e a sua história, que se mantém tão viva na região. É algo que nunca falta à mesa, seja como ingrediente principal de uma açorda ou como companhia de um queijo ou enchido.

“Quando comecei a trabalhar no Esporão – o que coincidiu com a minha mudança para o Alentejo – já se fazia cá um pão de fermentação natural. Para mim, foi como descobrir um mundo novo que cada dia me foi fascinando mais.”

Este fascínio gerou curiosidade por experimentar outros pães e por procurar saber mais. Essa procura, que se tornou quase obsessiva, trouxe algo fundamental para o seu crescimento – questões.

“Comecei a interessar-me cada vez mais pelo processo. Li muitos livros, pesquisei muito e em cada viagem que fiz procurei sempre experimentar pães diferentes. Estive na Escócia e andei quilómetros só para chegar a uma padaria. Tinha muitas questões para responder: o que é um bom pão? Como pode o nosso pão ser melhor?”

Um alimento humilde e simples que comemos todos os dias, que nunca viveu sob luzes e fama – não há nada de glamoroso em juntar farinha e água (pensávamos nós!) – começou a ganha outra dimensão na vida de Carlos. E, aos poucos, também na vida de cada um de nós. Começaram a surgir novas padarias em Lisboa – a padaria Gleba foi uma das primeiras e provavelmente a responsável boom que se seguiu.

Um alimento humilde e simples que comemos todos os dias, que nunca viveu sob luzes e fama – não há nada de glamoroso em juntar farinha e água (pensávamos nós!) – começou a ganha outra dimensão na vida de Carlos. E, aos poucos, também na vida de cada um de nós. Começaram a surgir novas padarias em Lisboa – a padaria Gleba foi uma das primeiras e provavelmente a responsável boom que se seguiu.

Este despertar coincidiu com a época de reformulação do restaurante da Herdade do Esporão, o que lhe permitiu dedicar-se quase exclusivamente ao tema. Ao estágio na Gleba, seguiu-se uma semana no Euskalduna Studio, no Porto, e dois meses a fazer pão em casa.

“Aproveitei o tempo em que estivemos fechados para continuar a trabalhar e a melhorar o nosso processo. Estive no Euskalduna Studio a ajudá-los com o pão e em casa tentei aperfeiçoar a massa-mãe. Foram dois meses a testar pão e a oferecê-lo à família e aos amigos para recolher feedback.”

Quando o restaurante reabriu, Carlos assumiu o cargo de chef e partilhou com Catarina Rocha, responsável de pastelaria, todo o processo. Juntos, agarraram o desafio de fazer o melhor pão da região. Todos os dias.

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“Quando regressámos, havia a questão de qual seria o caminho para o nosso pão. Começamos a fazê-lo todos os dias, a aperfeiçoá-lo, a experimentar novas técnicas, até chegarmos ao ponto em que estamos hoje. Fazemos pão todas as manhãs. É um trabalho que requer cuidado, paciência e carinho. Se não soubermos esperar, o pão não vai sair bem. O pão precisa de tempo e precisa de amor. É um grande desafio manter o nível. Não chegamos ao final do dia e dizemos ‘está feito o pão’. É uma coisa que está sempre em desenvolvimento, porque a temperatura, o ambiente e as farinhas nunca são iguais e vais notando essas diferenças todos os dias durante o processo.”

Ter entrado neste mundo e tudo o que aprendeu sobre o pão e, principalmente, sobre o processo de fermentação, tornou-o num melhor chef. Aprendeu a valorizar o tempo e percebeu a sua importância na gastronomia.

“Foi uma lição para tudo o que faço. O pão traduz aquilo em que acredito. É o resumo da filosofia que sigo, que está ligada ao tempo que dedicamos às coisas. É algo sobre o qual todos devíamos pensar. Já demos alguns passos nesse sentido, com o repensar do nosso estilo de vida, que acredito que esteja relacionado com o momento que o pão vive hoje.”

O pão está na moda, diz-se. Hoje pensamos duas vezes antes de comprarmos o mesmo pão de sempre. Mas nem sempre foi assim. O facto de estarmos a repensar a forma como cultivamos os produtos e de como os consumimos deve-se também a tudo o que fizemos de errado no passado.

“Para dar resposta à procura e consumo desenfreado pós-Revolução Industrial começámos com as culturas intensivas e, no caso do pão, começámos a modificar sementes. Explorámos os campos e tirámos tudo o que é vivo das sementes – os seus nutrientes e os seus aminoácidos – para que estas durassem mais tempo. E são essas as sementes que são usadas na maior parte dos pães e farinhas do supermercado, que nutricionalmente não nos trazem nada de bom.”

Chegámos a um ponto em que percebemos que o caminho que seguíamos, para além de não ser financeiramente sustentável, não era igualmente o melhor para a natureza nem, consequentemente, para a nossa saúde. A terra já há muito que se ressente da agressividade que tem vindo a sofrer e isso também se reflecte em nós.

“Os problemas que existem hoje com o consumo de glúten estão relacionados com isto tudo. O pão que fazemos aqui na Herdade pode ser comido por todos porque é feito com cuidado, com respeito pelo pão em si e, principalmente, pelo nosso organismo. A fermentação natural ajuda-nos a digerir melhor o pão e resulta num índice glicémico baixo, que regula os níveis de açúcar no sangue. Uma fermentação mais lenta proporciona mais tempo para que as enzimas produzidas pelos microrganismos sejam activadas e baixem as proteínas que transformam o glúten em aminoácidos e moléculas menores. Por outro lado, as bactérias alimentam-se do amido e de outros açúcares presentes na farinha, transformando-os em ácidos e outros compostos orgânicos.

Está-se cada vez mais a regressar às origens, a voltar a praticar uma agricultura sustentável e, no caso do pão, a voltar a utilizar sementes naturais e anciãs e a deixar para trás os cereais geneticamente alterados. É bom sentir que não somos os únicos a pensar assim.”

Para fazer pão são necessários apenas três ingredientes: farinha, água e sal. No restaurante da Herdade do Esporão acrescenta-se sempre mais um, que o chef Carlos costuma dizer que é o mais importante de todos – o tempo. As receitas podem ser muitas e os resultados também. Aqui, segue-se o mesmo processo todas as manhãs mas existe sempre espaço para a criatividade e para que esse tal quarto ingrediente faça aquilo que tem que fazer. As farinhas utilizadas são de quatro tipos de trigo e centeio e vêm de um produtor português, o Paulo Horta, de Cabeços de Alenquer.

PROCESSO

Os primeiros passos são: a medição das percentagens e a colocação das farinhas na batedeira. Nesta primeira fase, a farinha começa por estar seca e, por isso, inicia-se um processo de hidratação que consiste na mistura rápida (cerca de cinco minutos) de farinha e água. Assim que a massa atinge uma consistência mole, deixa-se que descanse durante uma hora. É neste momento que se adiciona a massa-mãe, que ficou a levedar desde o dia anterior. Esta massa deve estar sempre no seu máximo e este é um processo que leva tempo a aperfeiçoar.

É hora de adicionar sal e água e começar a trabalhar o glúten. Quanto mais trabalhada a massa for, mais elasticidade vai ganhar para crescer. Após este processo, retira-se da batedeira e coloca-se a massa a descansar.

Posteriormente, coloca-se a massa numa caixa untada com Esporão Azeite Virgem Extra, tapa-se a caixa e inicia-se a primeira fase de fermentação. Esta primeira fase é feita à temperatura ambiente – se estiver mais calor, a fermentação vai ser mais rápida, se estiver mais frio, será mais lenta. No Inverno demora cerca de quatro a cinco horas. De meia em meia hora, dá-se voltas ao pão – este movimento vai dar força à massa e vai atrasar a sua fermentação. Cinco horas depois, retira-se da caixa e coloca-se na bancada para a calibragem do pão. Divide-se em partes iguais e começa-se a bolar.

Deixa-se descansar durante 15 minutos e trabalha-se a massa até que esta ganhe a forma desejada. Envolve-se a massa num pano de linho e coloca-se em cestas de vime. Aqui inicia-se a segunda fase de fermentação, colocando-se a massa no frio a descansar até à manhã seguinte.

Segue-se a cozedura, e quem não tiver um forno a lenha pode fazer como no restaurante da Herdade do Esporão: utilizar cocottes de ferro fundido para cozer o pão, já que estas criam uma óptima base e mantêm a hidratação no interior do pão, de forma a criar a textura crocante que se pretende. Primeiro, o pão é cozido com a tampa, para manter a hidratação e crescer. Depois de crescer até ao máximo, tira-se a tampa, para que crie crosta. Terminado o processo de cozedura, deixa-se estar no forno mais um pouco, para que o pão perca alguma humidade. Retira-se e deixa-se a descansar uma hora. Quando o miolo já está firme, pode-se então cortá-lo e servi-lo.

“Quando terminas de fazer o pão e o cheirinho começa a sair do forno – esta é das melhores sensações e dos melhores momentos na cozinha!”