Mas, inevitavelmente, a Terra segue o seu percurso elíptico à volta do Sol e a ordem natural das coisas trará a regeneração. Tal como escrevia Fernando Pessoa com a caneta de Alberto Caeiro «[a] Primavera nem sequer é uma cousa / É uma maneira de dizer / Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes / Há novas flores, novas folhas verdes / Há outros dias suaves / Nada torna, nada se repete, porque tudo é real».
A Norte, no Douro, a Quinta dos Murças prepara a Primavera a cada dia de Inverno. A vinha adormece à medida que as plantas entram em torpor vegetativo; há muito mais actividade debaixo do solo do que acima deste. Nada que se veja a olho nu, mas os micro-organismos e pequenos invertebrados do solo rearranjam a rede de raízes e hifas de fungos, numa operação de ‘manutenção’ da Wood Wide Web [1], uma intrincada forma de internet natural que liga plantas e fungos de forma a criar ecossistemas mais resilientes a riscos e ameaças como geadas, secas, perda de nutrientes, pragas e doenças, invasões de espécies exóticas, entre outras.
Algumas das pequenas sementes de plantas autóctones anuais largadas durante o Verão recebem micro estímulos para se prepararem para germinar com os primeiros dias amenos de Fevereiro e Março. Desta forma, darão início ao processo de restauro dos enrelvamentos que irão ajudar à regulação de água, nutrientes e de organismos auxiliares da vinha e do olival. Os pinheiros, zambujeiros, cornalheiras, medronheiros, estevas, urzes e giestas das manchas de bosque que rodeiam e aconchegam a Quinta escondem algumas preciosidades – cogumelos silvestres que são o lado mais visível da tal “internet” natural e que nos dão valiosas informações sobre o lado biológico dos oito terroirs da Quinta dos Murças. Aqui e ali, em cada mosaico de vegetação, em cada pedaço de solo e rocha, as chuvas, o gelo e o vento ajudam a preparar a entrada da Primavera.
Mas numa Quinta com quatro diferentes tipos de exposição solar e, consequentemente, quatro tipos de microclimas onde as condições de luz, temperatura, humidade e fotoperíodo são igualmente distintas, coloca-se uma pergunta muito pertinente: onde chega primeiro a Primavera? Isso fará toda a diferença, porque vai criar um mosaico de vitalidade e de desenvolvimento das vides que implicará que até as mesmas castas possam ter comportamentos e respostas metabólicas distintas, conforme esta tripla combinação entre solos, biodiversidade e microclima.
A leitura fina de bioindicadores como as plantas e a comunidade microbiológica do solo, também conhecida como microbioma, poderá vir a possibilitar uma gestão proactiva da assinatura pretendida para cada um dos 50 talhões de vinha. Estes são vinificados separadamente, de forma a conseguirmos vinhos de quinta com uma identidade muito própria, que representem uma resposta efectiva ao desafio sublime do terroir. E é pelas vinhas do Quinta dos Murças Margem que começamos, visto que é ali, mais perto do rio, virados a Sul e Oeste, que a Primavera chega primeiro.
Durante o ano de 2017 foi desenvolvido o Plano de Gestão de Biodiversidade e Ecossistemas da Quinta dos Murças (PGBE). O intuito foi, precisamente, o de conseguirmos desenvolver uma abordagem construtiva da gestão da biodiversidade, recorrendo a bioindicadores como os elencos de plantas e espécies de insectos (como abelhas e borboletas) e de aves, quer as pequenas espécies de insectívoros (chapins e felosas), como de rapinas (falcões e milhafres), entre variadíssimas outras, enquanto fontes de informação preciosa acerca do estado ecológico das áreas de vinha, olival e também de bosquetes, taludes e linhas de água.
Em resumo, um PGBE é um documento de boas práticas agrícolas e ambientais que fomentem a ligação da biodiversidade, como factor de regulação, com o estado das áreas de produção, através de orientações que permitam melhorar, de uma forma interligada e evolutiva, a gestão da Quinta como um todo, em que a paisagem e as características do território serão os principais determinantes da diversidade dos vinhos.
Em particular destaque, neste primeiro ano, ficámos a conhecer melhor as 152 espécies de flora, das quais, oito, são endemismos Ibéricos, nomeadamente a Abrótea-da-primavera (Asphodelus serotinus), o Ranúnculo-das-paredes (Ranunculus ollissiponensis), as Bocas-de-lobo (Antirrhinum graniticum), o Samacalo-peludo (Anarrhinum duriminium), a Giesta-branca (Cytisus multiflorus), o Eríssimo (Erysimum linifolium), a Centáurea aristada (Centaurea aristata) e o Conopodium subcarneum, uma espécie aparentada com a salsa e a cenoura-brava. Ficámos ainda a conhecer as oito espécies exóticas, que incluem desde mimosas a canas, que serão alvo de planos específicos de eliminação progressiva e em cujas áreas serão efectuadas acções de restauro ecológico com recurso a plantas nativas. O conhecimento destas espécies, assim como das comunidades e habitats que elas formam, serão determinantes no planeamento e gestão de enrelvamentos, taludes e linhas de sebes naturais, que sustentarão muitos dos inimigos naturais das principais pragas da vinha e do olival, assim como irão ajudar na regulação da entrada de organismos benéficos como insectos polinizadores.
Pode parecer estranho que, em pleno Inverno, se esteja a sonhar com a Primavera e até com a vindima, porém tudo se encaixa, como pequenas peças que se unem para formar uma complexa tapeçaria em que dos detalhes emergem padrões que determinarão tudo. A leitura da biodiversidade permite-nos espreitar por entre o tecido que suporta esses padrões e ver como estes variam ano após ano e nos informam acerca do que podemos esperar a cada estação.
Adaptando o que escreveu o poeta e filósofo norte-americano Ralf Waldo Emerson, se adoptarmos o ritmo da Natureza, descobrimos o segredo da paciência e, à medida que os dias de Inverno passam, a vinha repousa e o vinho dorme nas cubas e barricas, a Natureza, na sua forma diligente e paciente, faz uma parte crucial do seu trabalho e antecipa a Primavera. Resta-nos aprender com ela como ajudar a que as condições ideias sejam encontradas para que venha mais um bom ano para grandes vinhos.
[1] ‘Wood Wide Web’ é a teoria de que as plantas e os fungos estão intimamente ligados uns aos outros e formam uma rede de partilha de nutrientes, sinais de alarme e de informações importantes sobre o estado do ecossistema, criando uma espécie de internet do solo. Sugestão de artigo: Plants share information using nature’s fungal internet