Uma vida dedicada à terra
Há pouco tempo conhecemos o Sr. Domingos, em Reguengos de Monsaraz. Um senhor de 84 anos, sorriso fácil, uma generosidade sem fim e uma horta imensa para cuidar.
A idade ainda não lhe vai pesando na hora de tratar das suas plantas. Acorda com o sol e passa os dias a trabalhar na terra. Não se lembra da sua vida ser de outra maneira. Aos 14 anos já semeava e vendia no mercado onde, ainda hoje, tem a sua banca.
Às Sextas e Sábados encontramo-lo lá. Bem disposto e rodeado de amigos. Todos o conhecem bem, até tem uma alcunha – alguns tratam-no por senhor Gatilho. Na sua banca costuma ter ervilhas, favas, espinafres, pimentão, tomates, pepinos, coentros, salva e mais uma mão cheia de produtos frescos da sua horta.
«São tudo plantas semeadas, tratadas e colhidas por mim. E isso tem muito valor. A coisa mais importante é saber-se a origem, a história do que se está a comer».
A paixão que tem pelos produtos é do tamanho do carinho que deposita ao tratar deles. Sente a responsabilidade do seu trabalho e, por isso, fá-lo com profissionalismo e honestidade.
«Os produtos têm muito que se lhe diga. É uma responsabilidade muito grande vender no mercado os meus produtos. Não vou vender às pessoas uma coisa qualquer, tem de ter qualidade, e tenho orgulho em poder dizer que os meus produtos têm essa qualidade. Não semeio uma fava ou um tomate qualquer, semeio os melhores. E tudo isso acaba por revelar-se no sabor dos alimentos».
Da sua banca trouxemos favas e não descansou enquanto não nos deu uma verdadeira receita de Favas com Chouriço, que fizemos para o almoço. Todos os restantes ingredientes que precisávamos para o prato, vieram também da sua horta.
Há algum tempo que um almoço não nos sabia tão bem. Pela qualidade dos ingredientes e pela história que os trouxe ali.
A paixão pela gastronomia e pelos ingredientes
A rota estava pré-definida: ser biólogo marinho era o caminho, mas a gastronomia acabou por ser o destino.
João Rodrigues sempre viveu em Lisboa, local onde nasceu, por isso, ter o mar perto era uma garantia e uma necessidade. Fez surf e desde cedo criou uma relação forte com o mar. O seu pai pescava, caçava e quando chegava a casa cozinhava o que tinha apanhado – o que acabara por ter grande influência na vida de João. O comer, o estar à mesa e as histórias à volta de cada prato, fascinavam-no tanto que acabou por se inscrever no curso de cozinha e pastelaria da Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Ser chef de cozinha não estava no seu horizonte mas João percebeu que ali seria mais completo. Tudo fazia sentido – o mar, a terra, as histórias e a gastronomia no mesmo lugar.
Foi por isso que, apesar de ser chef de cozinha ainda estar fora do seu horizonte, quando acabou por se inscrever no curso de cozinha e pastelaria da Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Só depois de já lá estar, percebeu que tudo fazia sentido – o mar, a terra, as histórias, a gastronomia, tudo no mesmo lugar.
A partir daqui nunca mais parou.
Hoje encontramo-lo num sítio provável – junto ao mar. É chef executivo do restaurante Feitoria, no Altis Belém Hotel & Spa onde há quatro anos renova uma estrela Michelin.
A terra e o mar são a sua maior inspiração e trabalhar com peixe e marisco continua a ter um gosto especial. O seu trabalho é distinguido pela qualidade, criatividade e respeito pela gastronomia tradicional portuguesa e pelos produtos que utiliza em cada prato.
Para si, a relação com a terra e a origem ditam a qualidade de um produto e, consequentemente, de um prato.
«Esta relação com a terra e o produto é muito importante porque, no fundo, é aí que está a autenticidade e a verdade».
Na sua opinião, as pessoas estão cada vez mais distantes da matéria, da terra e do contacto com quem lá trabalha e acredita que é importante que essa tendência se altere.
«É essencial que as pessoas saibam como é que as coisas foram produzidas, de onde vêm e o cuidado que se tem todos os dias com elas».
Da origem à mesa
Convidámos o chef João Rodrigues para o Episódio 16 do Esporão & A Comida Portuguesa A Gostar Dela Própria, filmado na Herdade do Esporão. Para cozinhar, o chef escolheu um dos seus mais emblemáticos pratos – “A Matança”, um prato que tem apenas dois componentes: porco preto alentejano e alface.
Estando no Alentejo, além do porco preto que é um produto autóctone da região, o chef procurou que o segundo componente, a alface, também fosse dali. Assim, fomos até à horta do Sr. Domingos buscar algumas alfaces para a confecção.
«Este prato faz todo o sentido aqui. No meio das vinhas, no Alentejo, porque estamos a tratar de um dos produtos autóctones alentejanos – esta presa de porco alentejano e, para acompanhar, a alface da horta do Sr. Domingos».
O prato escolhido pelo chef representa uma das festas que tem mais simbologia na sociedade portuguesa, a matança do porco. A celebração do animal que junta os amigos, a família e traz as pessoas de volta às origens.
«Este prato tem uma simbologia muito forte que tem a ver com os dias que nós vivemos hoje. Hoje em dia as pessoas estão cada vez mais afastadas das origens e encaram a vida de uma forma intensa, com muito mais velocidade, muito automática. Têm pouco tempo para parar. Nos dias que correm o tempo é quase um luxo, ou o melhor luxo da nossa sociedade».
Para criar a simbiose entre animal e vegetal o chef utiliza a alface para representar o coração do porco que, no dia da matança, é das primeiras coisas a comer-se.
«A ideia que está por detrás deste prato é muito simples. Há uns anos atrás, com o problema que houve com alguns enchidos, nomeadamente de porco, as pessoas distanciaram-se do mundo animal, a nível gastronómico, e viraram-se cada vez mais para os vegetais».
Este prato, além da experiência gastronómica, pretende criar uma harmonia entre o mundo animal e vegetal e passar uma mensagem – transmitir às pessoas a importância do conhecimento, do saber a origem dos ingredientes.
«Não só no mundo animal, como no mundo vegetal, se não se souber a origem do produto o problema continua a existir. De onde vêm as sementes, se são alimentos transgénicos ou biológicos. Se só ingerirmos vegetais não quer dizer que estamos a ter uma alimentação saudável. É preciso saber quem cuida desses vegetais e de que forma o faz».
E é assim que a história do chef João Rodrigues se cruza com a do Sr. Domingos. Duas gerações tão distantes, duas pessoas tão diferentes e com realidades tão distintas, que acabam por se encontrar na preocupação e no carinho pelos produtos.