O ano de 2014 marca o aparecimento no mercado do primeiro vinho português criado de raiz a partir de uma metodologia de trabalho que teve como preocupação nuclear a redução da pegada de carbono. Este trabalho pioneiro foi levado a cabo pelo produtor Henrique Uva, da Herdade da Mingorra, e pela Consulai, empresa de consultoria do ramo agro-alimentar. O lançamento da marca Imaginem veio focar ainda mais as atenções do público numa questão que está a ganhar peso crescente na indústria vitivinícola: a sustentabilidade.
Os temas ligados à ecologia são, por norma, causas bem aceites pelas pessoas. O aquecimento global e as suas consequências mais dramáticas, como as alterações climáticas e a previsível subida do nível dos mares num horizonte de décadas, são ameaças cada vez mais palpáveis. Mas o muito que se fala no assunto não tem – ainda – paralelo no que se faz realmente para limitar essa ameaça. É preciso aprender a respeitar o planeta, apregoa-se. Só assim garantiremos o futuro dos nossos filhos, sentencia-se. Mas tardam as acções globais. Para quem realmente se preocupa, resta um caminho: começar a mudar o bocadinho de mundo que está ao seu alcance.
Numa civilização ocidental habituada a padrões de consumo quase sem restrições, não é fácil introduzir medidas que possam limitar a “qualidade de vida” das pessoas… Mesmo que bem explicadas, e apoiadas na consciência colectiva de que precisamos de salvar o planeta de nós próprios, as novas práticas não podem, acima de tudo, mexer no bolso dos consumidores.
É um duplo desafio para as indústrias: descobrir como produzir sem hipotecar os recursos do planeta e fazê-lo sem que isso signifique pôr em risco a sua própria sobrevivência. “O paradigma é entre as empresas que querem mudar a vida das pessoas e as que só querem satisfazer o accionista. Estas últimas acomodam-se e desaparecem”, define João Roquette, CEO do Esporão, uma casa que nos últimos anos colocou particular ênfase nas questões ambientais. “Mas”, alerta, “temos de balançar esta inquietação, esta procura constante, com a sustentabilidade económica. De nada serve uma empresa responsável se for à falência…”
Bruno Caldeira, da Consulai, reforça esta ideia fundamental. “A pegada de carbono é dinheiro. Energia, materiais, transporte. Para uma empresa, perceber qual é a sua pegada de carbono e a sua evolução é uma arma de gestão. É um indicador que permite tomar decisões estratégicas.” Pedro Hipólito, enólogo da Herdade da Mingorra, vai no mesmo sentido: “O estudo das diferentes medidas adoptadas no intuitivo de reduzir a pegada de carbono fornece elementos muito importantes que podem apoiar a tomada de decisões, disponibilizando boas ferramentas de gestão, já que permitem evidenciar que é possível aliar boas práticas de produção, redução de custos e maior rentabilidade.”
O “peso” do vinho
Mas falemos então do impacto da indústria vitivinícola sobre o planeta. E a primeira noção a reter é que, ao contrário de outros produtos alimentares, o vinho não carrega “culpas” do tamanho do mundo – e isso só acentua o valor das iniciativas assumidas voluntariamente por produtores na procura de uma maior sustentabilidade.
Em 2007, nos EUA, o professor universitário Tyler Colman e o perito em sustentabilidade Pablo Paster publicaram um artigo em que detalhavam a pegada de carbono do vinho, desde a produção ao transporte. E concluíram que o maior impacto sobre o ambiente não era causado pela produção, onde o uso de fertilizantes e pesticidas não tem o peso que se regista noutros produtos agrícolas. Os gases com efeito de estufa produzidos durante o processo de fermentação também são praticamente irrelevantes. Onde o vinho perde pontos é no transporte.
Sendo produzido numa faixa bem definida do globo – e, mesmo aí, em zonas muito específicas – e tratando-se de um produto de consumo global, o vinho tem de viajar muito até chegar a uma boa parte dos consumidores. Nos EUA, por exemplo, mais de 95 por cento da produção concentra-se na costa Oeste (com a Califórnia em destaque), mas para cima de dois terços da população vivem a Leste do rio Mississippi, que delimita o terço “atlântico” do país. A maior parte do transporte é feito por camião e essa é uma opção “pesada” para o ambiente… Nesse pormenor, nada como a via marítima (cinco vezes mais “amiga” do planeta do que a opção terrestre e 11 vezes melhor do que o transporte aéreo, o pior de todos). A diferença é tão grande – exemplificavam Colman e Paster – que um vinho de Bordéus enviado por mar (6500km) e outro da Califórnia (3000km) transportado de camião, teriam a mesma pegada de carbono à chegada a Columbus, no Ohio.
Mas a realidade de cada país ou a metodologia utilizada no trabalho podem influenciar as conclusões a que se chega. Uma iniciativa do Grupo ARCE, em Espanha, concluiu que o transporte (considerando uma viagem média de 2200km) não era assim tão relevante no cálculo da pegada de carbono do vinho. Seguindo a norma PAS 2050 (que regulamenta metodologias para avaliação de emissões de gases de efeito de estufa, ao longo do ciclo de vida de um bem ou serviço, permitindo evidenciar a pegada de carbono resultante da sua produção), a empresa analisou a pegada de carbono de uma garrafa de Verdejo de Rueda e concluiu que a maior fatia das emissões de CO2 associadas à produção de vinho (46 por cento) provinha da embalagem, à frente da produção (32%) e da energia (16%).
Centrando as atenções na embalagem, o vidro assume a parte de leão da pegada de carbono (85%), seguido do cartão (9%), cortiça (4%), papel (1%) e cápsulas (1%). Olhando para os totais acumulados, os especialistas do Grupo ARCE concluíram que o vidro representa, por si só, 39 por cento da pegada de carbono do vinho (calculada em 1,2144 kg de dióxido de carbono por garrafa).
Mudar mentalidades
Garrafas maiores e mais pesadas têm um impacto mais relevante sobre o ambiente. E isso está a motivar a indústria a procurar alternativas mais leves do que o vidro, como os bag-in-box ou o polietileno – material já utilizado no azeite, por exemplo. A diferença é brutal: uma garrafa tradicional de vidro pode pesar entre 420 e 500 gramas, com algumas a chegarem mesmo às 900g; o plástico fica-se pelos 60g… Mas ainda há alguma resistência ao plástico, pelo que a atenção dos produtores se centra, fundamentalmente, na optimização do vidro.
“Já revimos o peso das nossas garrafas de 470 para 420 gramas e estamos a testar uma de 400g. É este o ponto onde se pode conseguir maior impacto na pegada de carbono”, assume João Roquette. O Imaginem, de Henrique Uva, é distribuído em garrafas de vidro de 360g. “Por ser mais leve”, explica Bruno Caldeira, “o transporte é muito mais eficiente.” A garrafa é mais pequena, as caixas são de menores dimensões, tudo isso conta no balanço final. A ideia é reduzir a pegada de carbono em 20 por cento ao cabo de três anos.
Mas aqui, tal como em outros factores ligados à imagem construída pela indústria ao longo dos anos, o grande entrave à mudança é mesmo a percepção dos consumidores. Bruno Caldeira reconhece que a garrafa utilizada para o Imaginem “tem um efeito pejorativo em Portugal”, por estar associada a produtos de menor qualidade. É preciso vencer resistências, mudar mentalidades. E a causa ecológica pode ser uma forma de lá chegar.
A Consulai e a Herdade da Mingorra não se limitaram a aproveitar o formato mais pequeno de garrafa que existia no mercado. Cortaram em tudo o que era acessório. Optaram por rolhas de cortiça natural, o que permitiu dispensar a cápsula; os rótulos são feitos em papel reciclado, com pouca tinta; as caixas são em cartão cru, também com o mínimo de tinta possível, o banner que acompanha a garrafa contém sementes de agrião que podem ser plantadas… “Há que fazer uma busca activa de materiais, mas também envolver os fornecedores, para que eles possam oferecer novas alternativas. É uma cadeia de valor, com muita gente envolvida. Não adianta mudar num lado sem envolver toda a gente”, analisa Bruno Caldeira.
Mas estará o mercado receptivo a este esforço ecológico? “Talvez ainda não esteja”, concede Pedro Hipólito. “Talvez mais uns anos e a aceitação seja diferente… Não existe em Portugal nem no resto da Europa nenhum vinho certificado com estas características, pelo que é uma incógnita prever o seu sucesso.” Ainda assim, um vinho ecológico não deixa de ser uma bandeira diferenciadora. E as reacções do mercado têm sido “muito positivas”.
O exemplo do Esporão
Mas se é iniciativa de louvar este lançamento do primeiro vinho em Portugal a obter a certificação PAS 2050:2011, no âmbito da pegada de carbono e serviços, o que dizer de uma empresa que conseguiu certificar todos os seus vinhos como Produção Integrada, sendo que alguns deles (como o Monte Velho, que vende milhões de garrafas por ano) são líderes de mercado? Entram em cena o Esporão e o seu líder, João Roquette.
Desde que, em 2006, então com 32 anos, assumiu o comando das operações no grupo, João Roquette introduziu uma vertente ecológica na filosofia do Esporão. “Temos procurado, e conseguido, que faça parte da cultura da empresa. Havia o culto da qualidade, agora há também a sustentabilidade.”
O CEO do grupo Esporão assume que a sustentabilidade foi também uma causa que ajudou a criar bom espírito de grupo na empresa. “As empresas precisam de causas. O mundo corporativo escusa-se a aderir a causas por temer que isso afecte o seu sucesso. Mas o contrário é que é verdade. E a sustentabilidade é a capacidade de ter futuro.” De caminho, uma declaração de contornos muito políticos sobre a situação actual: “Durante algum tempo, a mentalidade foi que a sociedade é que estava ao serviço das empresas e não o contrário. E viu-se o mal que isso fez ao mundo!”
Em Portugal, cerca de 1,2 por cento da área de vinha está certificada como Modo de Produção Biológico e a tendência é para crescer. Mas a agricultura biológica procura padrões de produção, não se preocupa com a “pegada” global dos seus produtos. Reduzir a pegada de carbono passa por um esforço integrado que envolve muitas variáveis e campos de actuação.
Uma das coisas que o Esporão conseguiu foi poupar 11 milhões de litros de água de um ano para outro. “Ficámos muito felizes, mas, contas feitas, percebemos que ainda é uma poupança pequena. A grande diferença será feita com a gestão de solos, no que respeita à sua capacidade para reter humidade”, explica João Roquette. Arrelvar os corredores entre as videiras, plantar árvores ou criar corredores de vegetação nas linhas de água são algumas das decisões já postas em prática, no Esporão e em várias outras casas vitivinícolas portuguesas. Mas ainda há tanto a fazer… “Há muito mais publicações sobre o fundo dos oceanos do que sobre o que se passa um metro abaixo da terra firme.”
Gestão dos solos, agricultura sustentável, tratamento e aproveitamento de resíduos, construção de infra-estruturas “inteligentes”, políticas ecológicas ao nível energético e de utilização dos recursos. A grande ambição de João Roquette é ver o Esporão tornar-se “auto-suficiente em termos energéticos” – por enquanto, ainda só produz metade da energia que consome. E tudo isto pode até ser ecologicamente louvável, mas trata-se, acima de tudo, de decisões económicas: “Para quê pagar a energia ou quem me recolha os resíduos? É uma questão de gestão da empresa.”
O mesmo pensaram outros pelo mundo fora. O cálculo da pegada de carbono tornou-se um instrumento de gestão em muitas empresas, das mais pequenas aos gigantes multinacionais (a Coca-Cola, por exemplo, optou por latas mais leves). No universo vitivinícola também já foram dados muitos passos no sentido de reduzir o impacto da indústria sobre os recursos do planeta. O vinho continua, mas as consciências estão a mudar.