A janela de vidro ao fundo da sala oferece a luz necessária para trabalhar na mesa grande onde espalha as suas aguarelas e pincéis. Sempre de pé – pela sensação de se movimentar em função das tintas e dos materiais – vai pintando e esquecendo o mundo lá fora. Aqui não há relógios, são poucas as visitas e problemas ou preocupações ficam do lado de lá da entrada. As horas são dadas pelo sol que muitas vezes engana, principalmente no Verão.
«A pintura foi sempre na minha vida como respirar. Uma coisa muito natural. Desde sempre que me lembro de pintar, desenhar e fazer coisas com as mãos».
O facto de ter nascido em Trancoso, uma pequena cidade do distrito da Guarda, não o impediu de sonhar e de encontrar a sua sensibilidade para as artes. Viajava para outros lugares através dos muitos livros que o seu pai tinha em casa, e deles bebia também a cultura que, nos anos 50, não existia fora de portas – na sua terra.
«Em Trancoso existiam os livros que o meu pai tinha em casa. Tínhamos muitos livros e eu viajava através deles. Já a pintura, tínhamos apenas uns quadros da Eduarda Lapa, que é uma pintora de Trancoso, e uma reprodução de um quadro de Picasso».
Aos 10 anos, mudou-se para Coimbra onde já havia cinema, teatro, ballet, espectáculos de ópera – tudo aquilo pelo qual se interessava e tinha curiosidade em viver. Era um novo mundo no qual se encaixava. Começou por integrar um curso de engenharia mas decidiu dedicar-se exclusivamente à pintura e à arte. Em 1970, entrou no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra – o lugar que lhe deu a liberdade de pensamento e os valores que marcaram a sua identidade. Lá, conviveu com artistas como Ângelo de Sousa, João Dixo e Alberto Carneiro que, consigo, percorreram um importante caminho nas artes em Portugal.
A sua primeira performance foi para si uma das mais marcantes. Em 1974, aquando do aniversário da arte no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, produziu milhares de flores em papel que foi distribuindo no caminho do Porto a Coimbra. “A Arte é bela, tudo é belo” foi o mote para a construção de um tapete gigante de flores. Desde este momento que nunca mais deixou de fazer performances e de utilizar o seu corpo como complemento à pintura.
«Das performances surge o meu gosto por pintar auto-retratos, porque o auto-retrato para mim serve como meio para contar a história do meu próprio corpo. É uma prática que faço porque cada auto-retrato conta a minha história. Estou a contar exactamente aquilo que eu sou. E a história do meu corpo. A presença do meu corpo não só na obra como fisicamente».
Existe em si uma certa anarquia nos espaços, nas técnicas que utiliza e até mesmo na forma como se apresenta mas, quando inicia um processo criativo, é na procura exaustiva dos elementos que demonstra o seu lado metódico e quase “obsessivo”.
Quando recebeu o convite do Esporão para criar os novos rótulos do Esporão Reserva e Esporão Private Selection quis trazer essa memória do vinho para a memória do rótulo, ou seja, que o rótulo também fosse vivo como o vinho. Que tivesse uma memória quando olhássemos para ele, que compreendêssemos a sua história, que não se esgota no vinho em si e que passa pela arte, pelo design e pelo contexto onde é inserido.
A sua própria história e relação com o vinho foram muito importantes durante o processo criativo. Apesar de, em 1953, não haver uma grande cultura vínica na Beira Alta, em sua casa havia uma adega onde o seu pai vinificava uvas que amigos das redondezas traziam e criava os seus próprios rótulos escritos à mão.
«Havia sempre vinho em minha casa e desde criança que sei como se faz vinho. E a partir de certa altura comecei também a experimentar e a apreciar, principalmente o vinho tinto. Não gosto de mais nenhuma bebida alcoólica e penso que gosto de vinho não só pelo seu sabor, mas pelo respeito que tenho pela sua história. Nunca perco a moderação, não quero que aquele momento de prazer se perca no meu corpo, no meu cérebro e na minha memória».
«Para fazer este rótulo fui ver pinturas da história de arte feitas por outros artistas que falavam de Baco e da história do vinho – o Baco, de Caravaggio, O Fado, do Malhoa, o Triunfo do Bacco, do Velasquez. Era um tema clássico e recorrente da pintura clássica relacionado com o prazer e o bem-estar – a alegoria de bons momentos da vida e a ideia de que esses momentos devem ser celebrados com vinho. E eu quis que os rótulos tivessem esse lado, que transmitissem essa ideia e esta história».
Em aguarelas e depois acrílico, Albuquerque desenhou figuras, videiras e bagos de uvas que contam uma “história de amor e de memória”. As personagens confundem-se com as próprias uvas.
O artista queria que o rótulo fosse visto como um todo, que fosse uma coisa única – um objecto artístico, uma obra de arte onde não existiam espaços entre palavras e pintura. Para isso foi muito importante o trabalho de parceria com o designer Eduardo Aires e a sua equipa.
«Estou habituado a trabalhar colectivamente. Gosto desta coisa de sermos entusiasmados, de discutirmos e abraçarmos as coisas com outras pessoas. O Eduardo e a sua equipa não só foram uma grande ajuda na compreensão da própria história dos rótulos do Esporão, como na criação da obra final. Foi importante este diálogo e esta parceria para que o rótulo resultasse como um todo. Há uma série de factores, da colocação do rótulo, do desenho, de como passar do desenho para o rótulo que é crucial no design.
O diálogo entre a arte e o design é o que faz o rótulo ser um sucesso. Não deixa de ser uma aguarela minha, mas também não deixa de ser um rótulo do Eduardo Aires. As duas coisas juntam-se e complementam-se».
«Sempre à frente do seu tempo, o Albuquerque faz parte daquele leque de artistas muito especiais que se podem comparar a alguns vinhos que precisam de tempo para serem apreciados. Com o passar dos anos, tem ganho outra maturidade e reconhecimento. A sua arte faz mais sentido hoje no mundo.» José Mário Brandão, da Galeria Graça Brandão, Lisboa